POR MARIA LUIZA Q TONELLI
Qualquer cidadão minimamente informado sabe que o Estado Democrático de Direito é aquele pelo qual os poderes públicos estão regulados por leis, ou seja, a sociedade é governada de forma tal que ninguém está acima das leis do país.
No Estado Democrático de Direito, a fim de impedir o exercício ilegal do poder e o abuso de poder, a Constituição (a carta política de uma nação) estabelece a divisão de poderes, divisão esta que estabelece competências e prerrogativas próprias dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Tal divisão se dá em razão de suas funções, poderes independentes e harmônicos entre si. Trata-se aqui da adoção do sistema de freios e contrapesos. Há um poder soberano, mas este é dividido nas funções Executiva, Legislativa e Judiciária. O sistema de divisões de poderes, deste modo, cria mecanismos de controle recíproco sem o qual não haveria garantia de conservação do Estado Democrático de Direito.
Se há um poder soberano dividido em funções, de onde surge tal poder? O Artigo 1o., Parágrafo Único da Constituição Federal de 1988, que é a Carta Política do país, diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”. Dizer que o poder “emana do povo” significa que a fonte do poder é o povo, provém exclusivamente do povo, que não o exerce diretamente, mas através de representantes eleitos. Infere-se aqui o princípio da soberania popular, onde cabe ao cidadão escolher os destinos da nação. No exercício de sua cidadania o indivíduo exerce o direito de votar, ou seja, soberania popular e cidadania são termos indissociáveis.
Dizer também que o poder “emana do povo” significa que as leis do país são feitas pelo poder eminentemente político que representa o povo, que é o poder Legislativo, o parlamento. Apesar da divisão dos poderes, pela qual nenhum poder pode se sobrepor ao outro, o que seria uma invasão de competência, usurpação e abuso de poder, numa verdadeira democracia o poder mais importante, no sentido de que é aquele que tem legitimidade de falar em nome do povo, é o poder Legislativo, onde as decisões são tomadas em seu nome.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada por Ulisses Guimarães de “Constituição cidadã”, o Brasil inicia um período verdadeiramente democrático, após 21 anos de ditadura militar sob um regime de exceção.
A democracia, como sabemos, é o regime político onde a regra da maioria prevalece. Isso não significa que numa democracia a maioria se sobreponha em direitos sobre as minorias, mas que no jogo político democrático prevalece a decisão da maioria.
No Brasil, uma democracia representativa sob o Estado Democrático de Direito, o/a presidente e os parlamentares nas diferentes esferas (federal, estadual e municipal) são eleitos e os magistrados são concursados ou nomeados, como é o caso dos ministros do STF, a mais alta corte de justiça do país, ou “última instância” do poder Judiciário, que exerce uma parcela do poder político, pelo princípio da separação dos poderes. Todavia, este é um poder exercido por agentes não eleitos pelo povo. Juízes de instâncias inferiores ou ministros do STF, exercem uma parcela do poder político no desempenho de sua jurisdição. Há algo que é inseparável do órgão de jurisdição: a imparcialidade do juiz. É a imparcialidade a primeira condição para que o magistrado possa exercer sua função dentro de um processo, quando o juiz coloca-se entre as partes e acima delas. O pressuposto para que a relação processual seja válida é a imparcialidade do juiz. Um julgamento justo, portanto, depende da imparcialidade daquele que julga respeitando as partes, ou seja a defesa e o contraditório.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 fechamos o ciclo do processo de redemocratização. Nossa Constituição propiciou oportunidades para que os cidadãos tivessem mais acesso à justiça, por exemplo, com a criação do Juizado de Pequenas Causas. Passamos da ditadura para uma “era dos direitos”. Isso, por outro lado, propiciou aquilo que chamamos “judicialização das relações sociais”. Conflitos de natureza pública e privada são cada vez mais solucionados na esfera do Poder judiciário.
Ocorre que nos últimos tempos os conflitos que deveriam ser resolvidos na esfera política, pela via da negociação democrática, pelo diálogo, são levados ao Poder Judiciário, o que confere aos juízes um poder questionável uma vez, que além de não serem representantes eleitos pelo povo, isso judicializa a política quando, por exemplo, a minoria inconformada com a decisão da maioria bate às portas dos tribunais para vencer no poder Judiciário o que não consegue no parlamento, a esfera propriamente política.
Cada vez mais podemos observar juízes sendo interpelados por políticos e pela mídia, ora para decidir, ora para opinar questões que não deveriam ser tratadas nos tribunais. Estamos vendo a própria política sendo levada ao banco dos réus, como ocorreu com o julgamento da Ação Penal 470, chamada pela mídia como “mensalão” do PT, o “maior julgamento da história”, e o “maior escândalo de corrupção deste país”, conforme afirmou o Procurador Geral da República Roberto Gurgel no primeiro dia de um julgamento realizado em pleno período de campanha eleitoral, quando todos os julgamentos daquela corte foram suspensos para atender aos “apelos da sociedade”, como propagava a mídia. Roberto Gurgel chegou a declarar na mídia que “seria bom que o julgamento refletisse nas urnas”.
Durante todo o julgamento, televisionado e transmitido ao vivo, víamos comentaristas afirmando que o STF, através do julgamento do “mensalão”, estava iniciando uma nova página da história da política deste país “acabando com a impunidade” e com a corrupção. Não é preciso repetir aqui algumas frases de discursos de alguns ministros que, ao julgar réus de uma ação penal, não se furtaram de julgar um partido político e a própria atividade do parlamento, arvorando-se menos em guardiães da Constituição do que em guardiães da ética. A mídia, em geral, declaradamente oposicionista em relação ao governo da presidenta Dilma, pressionou o STF para que o julgamento fosse realizado durante a campanha eleitoral, transformando o mesmo num espetáculo e, em nome da “liberdade de imprensa”, promoveu o linchamento moral dos réus, especialmente os do núcleo político, violando frontalmente o princípio constitucional da presunção de inocência. Aliás, desde 2005, quando Roberto Jefferson fez a denúncia de um suposto esquema de compra de votos que ele chamou de mensalão, a mídia passou a tratar todos os acusados de “mensaleiros”. Todos presumidamente culpados, condenados por antecipação.
O que ficou muito claro durante a realização o julgamento da AP 470 em plena campanha eleitoral, atendendo aos “apelos” de certa mídia que se arvora em ser representante do povo quando se pretende “portadora dos anseios da sociedade”, não foi outra coisa senão a relação promíscua entre a mídia, através de certos jornalistas, e o STF.
Pois bem, passados dois meses do julgamento da Ação Penal 470, o jornalista Merval Pereira das Organizações Globo lançou nesta semana um livro chamado “Mensalão”, com prefácio de Ayres Brito. Ora, o indivíduo que era o presidente da suprema corte do país prefaciando um livro sobre um julgamento que ainda nem teve seus acórdãos publicados? Além disso, ainda cabe recurso em alguns casos, pois a ação ainda nem transitou em julgado. Para quem proferiu tantos discursos em nome da necessidade da “ética na política” durante o julgamento, isso é, no mínimo imoral, tendo em vista que o livro em questão não é jurídico, mas uma compilação de artigos de opinião de um jornalista publicados em jornal durante o período do julgamento. Eis aí os indícios de uma verdadeira parceria público/privada entre um ministro do STF e mídia, a voz da oposição neste país. Uma relação, no mínimo, promíscua em termos democráticos e republicanos.
Pensava-se que não poderia haver nada mais indecoroso do que o comparecimento do ministro Gilmar Mendes ao lançamento do livro “O país dos Petralhas II”, de um blogueiro da revista Veja em pleno julgamento da AP 470. Todavia, agora há que se indagar sobre quem agiu de forma mais imoral. De um, esperava-se que em nome da imparcialidade do julgador que não comparecesse naquele momento a um evento para privilegiar o lançamento de um livro cujo título por si só já diz para que serve, por mais que seja amigo do autor. Do outro, esperava-se pelo menos a dignidade de esperar o trânsito em julgado de uma ação penal da qual foi um dos julgadores. A conduta de ambos coloca sob suspeita a imparcialidade na condição de magistrados. Parafraseando aquele ditado sobre a mulher de César, aos ministros de uma corte suprema de justiça não basta a exigência de imparcialidade. É preciso que pareçam imparciais.
Em tempos de judicialização da política, quando a mídia se coloca não no papel de fiscalizadora da política, a serviço da democracia, mas da oposição, que é a minoria, fica muito claro que estamos diante de uma nova estratégia de luta política que envolve não apenas partidos políticos mas os meios de comunicação e o poder Judiciário. Num Estado Democrático de Direito quem fala em nome do povo e quem decide os rumos do país são seus representantes eleitos. Não é este o caso do Poder Judiciário. Tampouco o da mídia.
Disputas políticas não podem, numa democracia, serem travadas sob o pretexto de uma pretensa “faxina moral” quando corruptos são sempre os adversários políticos. A política não pode ser julgada exclusivamente com critérios jurídicos e morais, mas políticos, porque Direito, Moral e Política são intercambiáveis, mas não se confundem. Já vivemos num tempo em que tudo era política. Hoje, ao que parece, vivemos num tempo em que tudo é moral. E quando a moral, que não se confunde com a ética, quer substituir a política sabemos muito bem aonde isso pode chegar.
O Joaquim Barbosa tá certíssimo!!!
ResponderExcluirNeste país que jogador de futebol vale mais que Professor !!!! Precisamos de valorizar mais os professores pq eles sim é que são a nossa porta de saida desta situação ridicula em que vivemos
ResponderExcluirPorque já as eleições dos “nossos” representantes são realizadas de modo a institucionalizar o crime, pois os grupos econômicos, ao patrocinarem a eleição de Presidente, Governadores, Prefeitos etc., assim o fazem, como é natural, sob a condição de obterem financiamentos graciosos, participarem de licitações premiadas, privatizarem o espaço público, multiplicando lucros;
ResponderExcluirPorque num tal contexto, a política passa a constituir extraordinário atrativo para criminosos profissionais, em geral burocratas medíocres, desqualificados moral e tecnicamente, sem perspectiva fora da política;
Porque certos partidos políticos passam a funcionar, assim, como autênticas quadrilhas, cujos membros seguem a lógica do quem dá mais, por isso que trocam de legenda constantemente, impunemente;
Porque o sistema representativo é um engodo que conta com a participação do próprio eleitor, que não raro exige, em troca do voto, algum proveito, de modo que o voto constitui, por isso, apenas um expediente para legitimar e perpetuar o crime, afinal os eleitos não representam o eleitorado, mas os seus próprios interesses e os interesses dos grupos econômicos que os patrocinam;
Porque, apesar das fraudes, insistimos em perpetuar determinados criminosos no poder, e a tudo assistimos passivamente;
Porque a Polícia, que deveria, junto ao Ministério Público, formar instituição única, está subordinada ao Poder Executivo, de sorte que são prováveis investigados (Governadores, Prefeitos etc.) que em última análise comandam as investigações;
Porque criminosos políticos estão protegidos por um sem número de privilégios (foro privilegiado, imunidades parlamentares etc.) que os tornam grandemente imunes às investigações;
Porque a corrupção política traduz a nossa própria hipocrisia, a nossa indiferença, a nossa tendência ao jeitinho; afinal, corrupção é de algum modo interação/acordo entre corruptor e corrompido, entre eleitor e eleito;
Porque somos obrigados a votar, quando votar é um direito e não um dever, pois o eleitor tem, há de ter, a liberdade de votar em quem quiser, quando e se quiser, consciente e livremente;
Porque a democracia, essa desgastada metáfora, é uma palavra que remete a múltiplas relações de poder que nada têm de democráticas, relações freqüentemente de violência e tirania e permanentemente em mutação (Michel Foucault);
Porque punir criminosos, embora necessário, não é o mais importante; o mais importante consiste em identificar as estruturas de poder que possibilitam o crime e mudá-las radicalmente, pois problemas estruturais demandam intervenções também estruturais e não apenas intervenções sobre indivíduos;
Porque insistimos em preservar instituições absolutamente desnecessárias: Senado Federal, Câmara Distrital etc;
Porque, em vez de enfrentar os problemas em suas causas, em suas raízes, tentamos combatê-las em suas conseqüências, tardia, burocrática e simbolicamente; e isso equivale a não combatê-las;
Porque temos um Estado excessivamente burocrático, que tudo pretende resolver por meio de leis, demagogicamente;
Porque multiplicar leis não significa evitar novos crimes, mas multiplicar novas violações à lei (Beccaria); e as leis desnecessárias enfraquecem as leis necessárias (Montesquieu);
Porque mais leis, mais juizes/tribunais, mais conselhos, mais prisões etc, pode significar mais presos, mas não necessariamente menos delitos (Jeffery);
Porque o povo brasileiro acredita ser livre, mas está enganado: é livre apenas durante as eleições dos membros do Executivo e do Parlamento, pois, eleitos os seus membros, ele volta à escravidão, é um nada (Rousseau); é que a participação popular se limita ao sufrágio a cada quatro anos; mas eleitos “seus” representantes, não se tem qualquer controle sobre seus atos, e o cidadão, convertido em objeto e não sujeito da política, só poderá expressar sua indignação nas eleições seguintes;
O Brasil é e continuará sendo um país corrupto simplesmente porque está estruturado para sê-lo!
Paulo Queiroz é Professor Universitário (UniCEUB) e Procurador Regional da República em Brasília
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Porque o povo brasileiro acredita ser livre, mas está enganado: é livre apenas durante as eleições dos membros do Executivo e do Parlamento, pois, eleitos os seus membros, ele volta à escravidão, é um nada (Rousseau); é que a participação popular se limita ao sufrágio a cada quatro anos; mas eleitos “seus” representantes, não se tem qualquer controle sobre seus atos, e o cidadão, convertido em objeto e não sujeito da política, só poderá expressar sua indignação nas eleições seguintes;
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