A tese da “banalidade do mal” tornou Hannah Arendt famosa. A filósofa judia nascida na Alemanha abandonou o país em 1933, devido ao avanço do antissemitismo. Como
repórter, viajou em 1961 a Jerusalém, para assistir ao processo contra o nazista Adolf Eichmann.
Na posição de obersturmbannführer (equivalente a tenente-coronel) da SS – organização policial-militar do partido nazista – ele organizara a expulsão, deportação e extermínio dos judeus europeus. O ainda jovem Estado de Israel o sequestrara para fora da Argentina, numa operação espetacular. Como a maioria dos espectadores, Arendt esperava encontrar no tribunal um monstro humano, através do qual o mal se manifestava.
No entanto, se deparou com um burocrata, um criminoso de escrivaninha, cuja banalidade a surpreendeu. As reportagens que escreveu da sala do tribunal foram objetivas, frias e perturbadoras. Os críticos a acusaram de indiretamente fazer das vítimas corresponsáveis ao dizer que teriam se comportado de maneira excessivamente passiva ou até cooperativa.
Na “desdemonização” de Eichmann feita por Arendt, muitos observadores viram uma minimização da periculosidade do réu. Na verdade, ela argumentava como a filósofa, a pensadora que foi durante toda a vida. Seu modo de ver o mundo gerou controvérsia, fazendo com que até mesmo amigos e companheiros se afastassem.
É justamente essa controvérsia que compõe o núcleo do filme Hannah Arendt, de 2012. A cineasta Margarethe von Trotta criou uma obra sensata e equilibrada. A atriz Barbara Sukowa incorpora o papel principal com alto grau de concentração. A era do pós-guerra e o clima entre imigrantes alemães e judeus em Nova York são capturados com precisão.
Por que as teses de Arendt chocaram a opinião pública e sobretudo os intelectuais de 50 anos atrás a tal ponto? Von Trotta atribui isso à maneira, então muito difundida, como diversos observadores judeus do processo mostravam sua dor e luto abertamente. Isso era algo que a filósofa teuto-americana não fazia. “Arendt não expressava sua dor, coisa que as pessoas não entendiam. Para ela, isso seria uma falta de compostura”, argumenta a diretora.
Importância de Heidegger
Nascida em 1906, Arendt cresceu num lar judaico secular. Ainda moça, foi estudar Filosofia e conheceu o filósofo alemão Martin Heidegger, cujas aulas eram disputadas sobretudo pelos estudantes mais jovens.
O filme que leva o nome da filósofa e se desenrola principalmente na década de 1960 dá destaque ao grande pensador Heidegger, por meio de breves flashbacks. Para Von Trotta, um ponto importante. “Ele lhe ensinou, de fato, como pensar. Ela própria disse: ‘Pensar pode salvar a pessoa das opções erradas e das catástrofes’. Heidegger tinha que estar no filme. Não como amante, mas sim como alguém que a ensinou a pensar.”
A produção Hannah Arendt apenas sugere que houve uma breve e apaixonada relação amorosa entre os dois filósofos. De um modo geral, a diretora evitou abordar os diversos estágios da vida de Arendt – como gostam de fazer os norte-americanos em seus filmes biográficos, os chamados biopics. Em vez disso, preferiu enfocar uma época essencial da vida da protagonista.
Duas decisões artísticas de Von Trotta tornam o filme especialmente consistente. A atriz Barbara Sukowa fala inglês diversas vezes, com forte sotaque alemão, como fazia Arendt. Curioso é que a alemã vive há mais de 20 anos em Nova York e teve que treinar esse sotaque. Essa opção consciente pelo bilinguismo é vantajosa para o retrato cinematográfico.
A segunda decisão importante foi a de não colocar um ator no papel de Adolf Eichmann, mas sim mostrá-lo exclusivamente em sequências originais da época. Para tal, Von Trotta recorreu a tomadas que já haviam sido utilizadas pelo cineasta franco-israelense Eyal Sivan em seu Un spécialiste, portrait d’un criminel moderne, de 1999.
A cineasta alemã já conhecia esse documentário bem antes de qualquer plano para um filme de ficção sobre Arendt e o processo contra o criminoso nazista. “Para mim, a confrontação com Eichmann foi muito importante. Por isso, não peguei nenhum ator, mas sim incluí o verdadeiro Eichmann. Eichmann, o irrefletido: ele não faz uso do dom de pensar.”
Outro motivo para a decisão foi evitar que o público se concentrasse no desempenho do ator e não percebesse o que a filósofa viu na época: um criminoso assustadoramente banal, que sempre tentou se projetar como mero executor de ordens.
Como retratar uma pensadora?
Durante os preparativos para a produção Rosentrasse, de 2003, Von Trotta teve pela primeira vez a oportunidade de se ocupar de forma mais detalhada com Arendt. O filme aborda um caso isolado de coragem civil, em que as esposas de judeus presos conseguiram forçar os nazistas a ceder, através de protestos continuados. Em suas pesquisas, a diretora deparou-se com textos da filósofa teuto-americana.
Von Trotta conta que, de início, não estava muito convencida quanto à ideia de filmar momentos da vida de Arendt. Com outras mulheres famosas que colocou na tela, fora diferente: o interesse por Rosa Luxemburg ou Hildegard von Bingen existiu desde o início.
Quando um produtor amigo propôs que ela fizesse um filme sobre Arendt, sua primeira reação foi recuar. “Como descrever uma filósofa?”, pensou. Só muito lentamente estabeleceu-se uma relação mais próxima com essa mulher fora do comum, que tantas vezes escandalizou e provocou.
Aonde o vento leva
Arendt passou boa parte de sua vida fora da Alemanha, embora não tenha abandonado a terra natal voluntariamente. Aqui, Von Trotta identifica paralelos consigo mesma, que viveu longo tempo em Roma e reside em Paris há vários anos.
Arendt passou boa parte de sua vida fora da Alemanha, embora não tenha abandonado a terra natal voluntariamente. Aqui, Von Trotta identifica paralelos consigo mesma, que viveu longo tempo em Roma e reside em Paris há vários anos.
“Eu mesmo fui apátrida durante muito tempo. Nasci em Berlim e durante anos só tinha um passaporte de viagem.” Somente após seu primeiro casamento, a cineasta obteve também documentos alemães.
Von Trotta sente-se ligada à Arendt nesse aspecto, o de “poder viver aonde o vento a leva, por não ser tão apegada ao próprio país”. Mas a diretora também reconhece um aspecto contraditório nessa relação com a filósofa: “Não me sinto parte, mas quero compreender”.
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