Pino Daeni -- Desalento |
Deixar fazer, deixar passar e deixar ir, eis o singelo lema que iria animar o movimento liberal até hoje. Mas há uma outra parte deste dizer, talvez a mais importante dele, que resta oculta: deixar morrer. O liberalismo de verdade não mata, deixa morrer -- e se você morreu, é responsabilidade sua por ter morrido na contramão atrapalhando o tráfego.
Os crackeiros carregam um pouco disso: pobres diabos famintos que perambulam pelas ruas, largados à própria sorte, consumindo uma substância que lhes dá, por um instante, um prazer que nunca sentiram (nem sentirão) em uma vida inteira de desgraças. Hoje, eles são protagonistas deste interessante debate, mas sua existência secreta e, ao mesmo tempo, óbvia é chave.
Pois bem, o vício do crack é algo relativamente novo no Brasil, uma processo que se instalou entre as classes mais precarizadas das áreas urbanas, sobretudo dos anos 90 para cá. O crackeiro, em metrópoles como São Paulo, não é, ou era, alguém simplesmente sem valor, ao contrário, via de regra ele cumpre uma função importante junto à especulação imobiliária: são largados em áreas cujo interesse momentâneo do "mercado imobiliário" é deixar prédios inteiros vazios, a espera de preços melhores.
A existência do crackeiro é permitida tacitamente pelas forças policiais, o que torna tais áreas inabitáveis, as tirando dos olhos da boa sociedade até (e se) os interesses mudarem, fato do qual resulta a sua retirada -- manu militari se for preciso, como aconteceu na São Paulo de Kassab; o capitalismo não trabalha a partir diretriz de produção para o consumo real, mas sim de produção para consumo em abstrato e com a negociação de expectativas, o que resulta em excedentes vazios ou inutilizados.
O crack também se trata de uma boa medida, no sentido perverso da gestão da vida, para se livrar de um contingente populacional -- eliminando mesmo ou reduzindo sua durabilidade --, caso ele se torne incômodo. Sua disseminação é deixada solta por aí e populações inteiras morrem, são deixadas para morrer. Evidentemente, o crack não é causa, mas consequência, antes dele há toda a miséria afetiva, econômica e social por detrás das camadas mais pobres da metrópole.
A atual política de internar compulsoriamente viciados em crack -- o que corresponde a maioria dos usuários -- é a típica políticas de bondade que esconde muita coisa. Que nos explica como um sistema supostamente calcado na permissividade precisa, para responder às suas demandas, se contradizer. Ninguém deseja curar o crackeiro, é preciso apenas tira-lo da vista, higienizar as ruas e tocar as coisas nos termos necessários. Ninguém, sejamos francos, está preocupado em curar as chagas sociais que causam isso.
O crackeiro é conduzido a uma cura impossível -- uma vez que a dificílima cura para seu vício depende da vontade do viciado. Ele está deixado para morrer longe dos nossos olhos. E passa a adquirir nova importância econômica, como objeto internável, coisa que certamente não é gratuita e envolve uma economia médica -- afinal de contas, alguém há de ganhar com isso. Argumentar pela resolução das causas é prontamente desqualificado em nosso meio. E até lá, o que faremos? Dirão alguns. No entanto, a questão verdadeira é: e como as coisas conseguiram chegar até aqui?
Destruição e criação (de um ser humano, inclusive), embora frequentemente pareados na forma de um binarismo, são elementos de natureza diversa: é muito, muito, mais fácil destruir setores inteiros a ponto deles consumirem crack a fazer o contrário. Os confinamentos de viciados estão para a cura desse vício como as sangrias medievais estão para a cura de qualquer mal. A cura para tanto é psicológica mas é social, sem a última, a hemorragia não terá fim
Destruição e criação (de um ser humano, inclusive), embora frequentemente pareados na forma de um binarismo, são elementos de natureza diversa: é muito, muito, mais fácil destruir setores inteiros a ponto deles consumirem crack a fazer o contrário. Os confinamentos de viciados estão para a cura desse vício como as sangrias medievais estão para a cura de qualquer mal. A cura para tanto é psicológica mas é social, sem a última, a hemorragia não terá fim
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