quinta-feira, 18 de abril de 2013

A INVENÇÃO DO BRASIL POR JUREMIR MACHADO DA SILVA.



Como o Brasil foi inventado


Desde o desembarque dos portugueses, em 22 de abril de 1500, o Brasil vive sob o signo da contradição. O primeiro choque de opiniões opôs as visões de paraíso e inferno. Os conquistadores como que perderam a capacidade de julgar. Estariam no jardim edênico ou na selva cruel e assustadora? Ao longo de 500 de história, depois da chegada de Pedro Alvares Cabral, os brasileiros, os concebidos no Brasil e os convertidos pelo tempo e o coração, oscilaram entre a certeza de habitar a terra paradisíaca, ao menos no referente ao futuro, e o desencanto diante das desigualdades quase insolúveis.
O Brasil seria o paraíso do futuro ou do presente orgiástico e tropical? Os índios viviam o presente. A noção segundo a qual o Brasil seria o país do futuro traduz-se por: o Brasil é e será o paraíso ou é potencialmente paradisíaco e utópico. Os portugueses aventuravam-se pelos mares em busca de riquezas fáceis. Da América, misteriosa, queria-se o ouro. Os homens de Cabral inquietaram-se com a falta de minerais preciosos. O escrivão Pero Vaz de Caminha, verdadeiro etnógrafo da expedição, anotou em sua crônica: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos . Porém, a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minhoporque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. As águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
Sem metais, o Brasil estaria fadado, em princípio, ao descaso, o que, de certa forma, aconteceu. Portugal não investiu de imediato na colonização docontinente adquirido. Recebidos por índios nus, os navegadores espantaram-se com o exotismo e vacilaram entre o encanto e a decepção. Caminha, entretanto, talvez interessado em agradar o rei, descreveu a beleza das terras virgens, dos bons selvagens, saudáveis, felizes, livres e despidos, e inaugurou o discurso do novo paraíso.
A primeira impressão deslumbrada dos aventureiros tendeu a declarar a existência do paraíso no presente, no momento dado da descoberta: o éden ao alcance da mão, o futuro da Europa estrangulada pelas guerras, sob as garras da inquisição católica e infestada pelas epidemias, o lugar certo para os deserdados do Velho Mundo, exposto também ao crescimento demográfico, ainda que Portugal contasse cerca de um milhão de habitantes.
Raymundo Faoro, no clássico Os Donos do Poder, lançado em 1958, destacou as nuanças das informações prestadas pelos invasores – os europeus que se apossaram de uma terra ocupada: “Um membro da camada dirigente, como o burocrata escrivãonão via só o lado mercantil da descoberta. O letrado traía preocupações diversas, que se sublimariam numa visão diferente do novo mundo, insinuando-lhe outro destino, mais refinado, mais sutil, de alcance mais largo”O destino sugerido, sem nenhum disfarce, referia-se ao paraíso.No reino abençoado, não se morreria senão de velhice.
No vasto e extraordinário inventário feito por Faoro, a palavra paraísoespalhou-se pelas páginas, com a retomada da literatura dos viajantes (os primeiros grandes cronistas do Brasil) ou para a fundamentação das análises do próprio Faoro. Era preciso que os europeus entendessem a outra face da maravilha encontrada. No lugar do ouro, a simplicidade, a saúde, a paz e a igualdade. Eis uma síntese do pensamento do filósofo Michel de Montaigne, para quem no Brasil inexistiria o medo, o governo e a submissãoO paraíso imaginado por Montaigne remetia ao passado, à idade de outro primitiva.
Faoro, convencido de que o paradisíaco impressionou mais os conquistadores do que as dificuldades e a ausência do ouro, sintetizou: “A visão edênica do novo mundo, primeiro capítulo da invenção da América, trazia, nas descrições dos viajantes e humanistas, a abertura possível para uma crise europeia, sem a qual, mais tarde, a colonização não se teria consolidadoPortugal, decidira-se a povoar o paraíso para livrar-se da malta de excluídos e garantir a posse do Brasil contra os invasores. Não fosse isso, o processo tomaria rumos inimagináveis. Se os primeiros entusiastas viram no indígena o bom selvagem e deliraram com o sexo fácil, as índias sensuais e entregues, os viajantes-cronistas preferiram a cautela. Jean de Lery, em Histoire d’un Voyage fait en la Terre du Brésil, pronunciou-se contra a selvageria e a insensibilidade dos primitivos.
A imagem paradisíaca do Brasil da aurora do século XVI, no entanto, realçaria o utópico: seria possível, imaginava-se, saltar da miséria à riqueza, em uma ascensão social mágica, sem muito trabalho, e veloz. Diz-se que o apego do brasileiro aos projetos de enriquecimento fácil, indolor e rápido começou já na descoberta. Tanto quanto o suposto amor ao ócio, já cultivado pelos preguiçosos senhores de engenho.
Faoro tratou rapidamente de assinalar que a fantasia do mundo idílico durou pouco. A realidade desabou sobre os sonhadores. A colonização implicaria esforços colossais e aliaria o sofrimento às especificidades do português como colonizador. A decepção não extinguiu a mitologia do paraíso. Mudou-lhe o estatuto e a relação com o tempo. A utopia orgiástica do presente de ociosidade nos braços das mulheres e nas águas cristalinas dos rios cedeu lugar à esperança prometeica no futuro realizador do paraíso. Da decepção, duramente sentida, sobreveio a certeza de que a matéria existia, cabendo dar-lhe forma para que a terra sem mal se fizesse. A metrópole percebera cedo que um mecanismo bom para o escapismo caíra-lhe nas mãos. Os descontentes receberiam no além-mar os benefícios que nem o céu lhes daria: a felicidade almejada. Sanar-se-iam os males de casa com o envio dos indesejáveis ao reino da esperança.
O gigante adormecido não colaborou. O jardim edênico liberou seus monstros. A semente estava plantada: uma vez paraíso, sempre paraíso. O presente rejeitava o idílio, o futuro abria-se para torná-lo o guia, a luz e o ideal a ser alcançado. A admiração desmesurada converteu-se em tristeza. A decepção em móbil do desenvolvimento. Por que decepção? Gilberto Freyre, emCasa Grande & Senzala, de 1933, certamente o mais belo livro já escrito sobre o Brasil, superou as aparências e indicou a extensão das dificuldades que tiveram de ultrapassar os colonizadores para que a empreitada portuguesa fosse vitoriosa.
A colonização serviu à consolidação da conquista e apoiou-se, para ganhar o aval dos deportados, na poesia edênica difundida. Os trópicos, que encantam pela beleza do sol, da vegetação luxuriante, dos rios caudalosos e, no caso brasileiro, da grandeza quase incomensurável do território, escondiam espetaculares armadilhas.
O paraíso continha o inferno. Freyre mostrou ter o português encontrado uma vida “aparentemente fácil” que, vista de frente, era terrível para a organização econômica e social. O paraíso tropical era menos doce que a fria América do Norte, onde, alegava ele, os colonos encontraram praticamente a mesma temperatura dos seus países de origem e adaptaram-se com menos dificuldade. A descrição de Freyre poderia levar a pensar que a ideia de paraíso não esteve presente nos primórdios da colonização brasileira. Engano. Ele cuida de contestar o mito. Minucioso, reuniu dados para que dúvidas não subsistissem. Na vertigem da contradição, tudo era desiquilíbrio. Havia excessos positivos e negativos.
*
Falta pensar o paraíso segundo Sérgio Buarque de Holanda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário