Uma bela reflexão sobre a complexidade de Morin.
MORIN NAS FÉRIAS
Por Eron Duarte Fagundes
Dos filósofos do século XX o francês Edgar Morin talvez seja o que mais se encaixa em minhas necessidades cerebrais: de reflexão e de expansão. Como o próprio Morin adverte na introdução ou prólogo de Meus filósofos (Mes philosophes; 2011), meus filósofos (os meus, como os dele) não se circunscrevem à filosofia; Morin adiciona a seus pensadores um romancista como o russo Dostoievski (“meu primeiro despertar para a Filosofia, meu primeiro sentimento filosófico decorrem de Dostoievski” escreve Morin, e eu assinaria: minha filosofia é Dostoievski), um outro romancista tão diferente de Dostoievski como o francês Marcel Proust e um músico perplexo como o alemão Beethoven. Eu acrescentaria o cineasta germânico Alexander Kluge, assim como fez uma autopersonagem do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet, em sua novela A doença, uma experiência (1996), referindo o diretor francês Alain Resnais como seu filósofo favorito. (Sim, sim: pensadores laterais, como Bernardet, ainda mais escrevendo ficção, anarquizam necessariamente o sistema filosófico; mas Morin…).
Tergiversações conceituais à parte, Morin é o filósofo por excelência duma época tão sem filosofia quanto excessivamente filosófica. Morin, com seu gênio pan-humanístico, captou isto ao alargar, em Meus filósofos, para além das estritíssimas barreiras profissionais, a existência do pensamento filosófico. Ninguém melhor do que ele poderia fazer isto com paixão e rigor. Meus filósofos é o inventário íntimo de um grande espírito; e que é que pode habitar um grande espírito senão uma intimidade profunda com o centro das coisas numa quadra em que quase tudo se resume ao carnal, ao superficial, ao ígneo-material?
Li Meus filósofos, em quase sua totalidade, durante um voo de férias entre Porto Alegre e Buenos Aires. Fui dar cabo das páginas restantes num quarto e num saguão de hotel da capital portenha, após longas caminhadas por Puerto Madero e entreveros humanos pela Corrientes, pela 9 de Julho, pela Lavalle, dentro da Galeria Pacífico ou navegações e almoço pelo Rio de la Plata.
Na sequência das férias, leitura de outro pequeno grande livro de Morin, Introdução ao pensamento complexo (2005), onde o pensador parece organizar, já próximo de um hipotético fim (Morin já passou dos 90 anos) mas com uma lucidez eternamente jovem, várias coisas de seu baú de ideias que se acumularam pelo caminho, com uma tenacidade lógica inquebrantável. É um pouco como se Morin traduzisse em resumo certas essências dos seis volumes de O método, provavelmente o maior esforço de pensar do século XX.
Comecei a ler Morin e seu resumo do complexo quando o avião decolou do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, para o aeroporto de Guararapes/Gilberto Freyre, em Recife, Pernambuco. Concluí as breves páginas à beira duma piscina, defronte do mar, em Porto de Galinhas, um balneário famoso no obscuro município pernambucano de Ipojuca, por onde corre o rio Ipojuca, que também banha a cidade de Caruaru, onde estive e onde nasceu outro de meus “refletores” favoritos, o crítico literário pernambucano Álvaro Lins. Ligando as pontas de meu aprendizado inicial (Lins) com meu aprendizado da maturidade (que é um eufemismo da velhice que já está aí), Morin, creio poder entender uma parte do que o francês chamou “civilização das ideias”; domar estes conflitos entre o anacronismo que vive em mim desde muito cedo e não se desarraigou (Lins) e um olhar meio desesperado para um futuro que espera (Morin) para finalmente captar, em Introdução ao pensamento complexo, o próprio processo de pensar, que já estava no universo de Kant e, de alguma maneira, é revelado nas imagens e palavras de filmes como aqueles de Eric Rohmer.
Ou seja, de novo caio fora da filosofia oficial. Como, com leveza e sinuosidade, sugeria Morin em Meus filósofos. Devemos ajoelhar diante deste cérebro que aos 90 anos permanece intacto e pode oferecer um acompanhamento de férias para este observador como um guia do turismo do pensamento.
NOTAS DE LEITURA:
- Meus filósofos, de Edgar Morin (2011). Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre, Sulina, 2013. Título original: Mes philophes. Na página 73, lemos uma reflexão essencial sobre a artificiosa separação entre a cultura das humanidades e a cultura científica. Na página 105, Morin entrega o que sempre me pareceu claro lendo o francês: suas origens dostoievskianas.
- Introdução do pensamento complexo (2005), de Edgar Morin. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre, Sulina, 2011. Título original: Introduction à la pensée complexe. Na página 41, sujeito e objeto, elementos que se repulsam e se atraem, que se anulam e se completam, que se opõem e que são um só na complexidade.
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