O que o doping ensina
A entrevista de Lance Armstrong a Oprah Winfrey, muitíssimo melhor do
que o esperado – principalmente porque a apresentadora soube prensar o
ciclista –, prendeu a atenção do mundo tal qual uma final de futebol ou
de um seriado. A confissão do uso de substâncias proibidas veio
inteligentemente no início, num aparentemente pueril ping-pong de sim ou
não, e com a admissão feita, Lance já estava devidamente desarmado
para então contar as histórias que viveu, venceu, negou, lutou para
negar e se rendeu.
O agora sete vezes perdedor da Volta da França demonstrou nervosismo
por vezes também por ser confrontado, possivelmente sem saber, com
declarações em que desmentia categoricamente o uso de EPO
(eritropoietina, um estimulante para que a medula óssea produza as
hemácias e permita uma melhor oxigenação), testosterona e outros
dopantes. Mesmo com tantos nomes de ex-companheiros e pessoas que
ajudaram a delatá-lo e permitiram a investigação que culminou em sua
derrocada esportiva e moral, Armstrong evitou falar dos outros, mas
indiretamente deu as letras. Deixou claro que o mundo do ciclismo vive à
base de doping. “Entre 300 ciclistas, 5 não se dopam”, chegou a
comentar, e reiterou que nunca se sentiu arrependido por ter ganhado na
base da trapaça porque “era a maneira de igualar as condições”.
Porque é simples: todos trapaceiam. Não só no ciclismo.
No mundo dos iguais bolados e anabolizados, Lance era o melhor, e
notória e abertamente faria tudo para ser o melhor e vencer. Daí sua
cabeça deitar no travesseiro sem peso, mesmo utilizando o câncer como
mote. Lance era o desigual num mundo de desiguais, que morreriam
abraçados se os antidopings, defasados, não acusassem as evidências. E
levantar a questão de liberar o doping no ciclismo é admitir a derrota
do esporte.
O esporte em geral vive de seus dopings. O atletismo é uzeiro e
vezeiro, a natação vira e mexe aparece com seus casos, o automobilismo
teve os seus, aqui, inclusive. E há seus paralelos e metáforas neste
último. O carro da Brawn de 2009 era anabolizado com aquele difusor
duplo que era proibido no início da temporada, mas que a FIA deu um
jeito de liberar por conta da situação da equipe recém-comprada da
Honda. Bem como a Benetton de 1994 com os auxílios eletrônicos proibidos
e seu assoalho diferenciado. E a asa que flexiona, e a espionagem que
se faz para obter dados de outra equipe, e o time que ordena troca de
posições.
No jornalismo, o doping é usar escuta ilegal, inventar entrevista ou
acrescentar palavras que o interlocutor disse – alguns casos no meio – ,
roubar a notícia do outro sem dar o crédito, usar a informação com um
outro fim que não informar – aliás, colegas, Oprah deu um banho de como
se fazer uma entrevista ontem; é uma lição e tanto. Se os fracos não
superam seus limites, procuram os últimos meios. O importante é
competir, contanto que ganhe.
Longe de ser conivente com o ciclista, principalmente porque sua
admissão só se deu porque não tinha mais jeito de esconder sua farsa –
sua personalidade suja vai ficar para sempre. A grande questão é que
parece que a criação humana é feita, em maior ou menor escala, com a
intenção de se suceder a qualquer custo: no tapete que se passa no
colega de trabalho para subir de cargo, no uso do acostamento na estrada
parada pelo excesso de tráfego, no furo da fila do banco ou do show,
na carteirinha de meia-entrada, na comissão que se leva para escolher
um negócio em detrimento de outros, na propina que se paga ou que se
recebe para que não haja multa. O exemplo de Armstrong, mundial porque
ele se fez grande desta forma e se tornou pequeno igualmente, é apenas
um reflexo social e leva a uma reflexão. Geralmente os maus exemplos
ensinam muito melhor, e se houve um choque geral pela forma com que
Lance obtinha seus êxitos sem achar aquilo um descalabro, é porque há
realmente algo a se mudar – sem precisar de lei de moral e bons
costumes. É questão de adotar outras posturas se o caráter já não
estiver desviado. Porque não adianta depois passar o resto da vida
pedindo desculpas.
Um dia, as pessoas vão entender que a única trapaça aceitável na existência é no truco.
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