Da ditadura ao separatismo, futebol e política caminham de mãos dadas na Espanha
FONTE:André Donke, Guilherme Nagamine, Igor Resende e Jean Santos, do ESPN.
Pela terceira vez em seis anos, Madri pouco se importará com a decisão da Copa do Rei. Isto porque Barcelona e Athletic Bilbao jogarão de novo a a final da disputa, neste sábado, o que já acontecera em 2009 e 2012. O confronto já foi um clássico no futebol doméstico e também representou - e ainda representa - bastante em questões políticas. Na verdade, é difícil imaginar o esporte mais famoso do planeta separado da política na Espanha.
"O povo espanhol é bastante politizado e participativo em questões sociais", contou ao ESPN.com.br o chefe de esportes do jornal catalão "ARA", Toni Padilla,
Como não poderia deixar de ser, na Espanha, o envolvimento político no futebol sempre foi mais conhecido e refletido por meio do seu grande clássico: Barcelona x Real Madrid.
Embora não fossem tão soberanos quanto são atualmente, os dois clubes apareciam desde o começo do Campeonato Espanhol e da Copa do Rei entre os principais e alternavam títulos com Athletic Bilbao, Valencia, entre outros.
Mais do que a rivalidade no campo, ambos também nutriam uma adversidade fora dos gramados. As diferenças entre os espanhóis da capital e os catalães com seu desejo separatista sempre influenciaram neste cenário e se intensificaram após o Franquismo (período da ditadura no país, leia mais abaixo), que começou logo após o fim da Guerra Civil Espanhola, em 1939 (veja mais abaixo)
A situação política entre Real e Barça é famosa não só na Espanha como no mundo, da mesma forma que o posicionamento do Athletic Bilbao, equipe do País Basco, região que, assim como a Catalunha, luta por sua independência. Porém, o que pode não ser tão conhecido é que a politização vai muito além dos três clubes ou de catalães e bascos com o resto do país ibérico.
Um levantamento feito pelo jornal "Marca" em dezembro de 2014 apresentou 14 torcidas organizadas entre os 20 clubes da primeira divisão que possuem ideologias políticas, independentemente de caráter violento ou não.
Envolvimento político de torcidas no futebol
Clube | Nome da torcida | Informações |
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Atlético de Madri | Frente Atlético | É uma ala de extrema direita que costuma ocupar o Fundo Sul do Vicente Calderón nas partidas |
Athletic Bilbao | Herri Norte | Fundada em 1981, a torcida se declara "101% antifascistas e antirracistas" e teve alguns conflitos com radicais do Porto |
Barcelona | Boixos Nois | O grupo, que significa caras loucos, em catalão, é de extrema direita, fundado em 1981 e foi expulso do Camp Nou pelo ex-presidente Joan Laporta. Em 2010, membros da torcida foram presos por envolvimento com drogas ilícitas |
Celta de Vigo | Celtarras | É uma torcida de mais de 200 pessoas de extrema esquerda e se denomina antifascista. Eles boicotaram o minuto de silêncio em memória de uma policial assassinada em Vigo durante assalto a um banco em novembro de 2014. A atitude foi fortemente condenada pelo clube |
Cordoba | Brigadas Blanquiverdes | A torcida, fundada em 1993, é de extrema direita, tem cerca de uma centena de adeptos e causou alguns incidentes nos últimos anos |
Deportivo La Coruña | Riazor Blues | A torcida é composta por radicais de esquerda e nacionalistas galegos, foi fundada em 1987 e acabou em 2003, depois que um integrante matou um torcedor do próprio Deportivo, chamado Manuel Ríos, que tentou defender um fã do Compostela que era atacado por um grupo de radicais do time de La Coruña. Porém, a torcida voltou meses depois e hoje reúne cerca de 2 mil pessoas em seu espaço no estádio |
Elche | Jove Elx | A organizada é de extrema direita e não tinha boa relação com José Sepulcre Coves, que foi presidente do clube até o fim de abril deste ano |
Espanyol | Brigadas Blanquiazules | O grupo é de extrema direita e foi um dos grupos de ultras com maior evidência nas décadas de 80 e 90. Os seus símbolos não são permitidos no estádio |
Málaga | Frente Bokerón | A torcida é de extrema direita e reúne entre 100 e 200 pessoas no estádio |
Rayo Vallecano | Bukaneros | O grupo tem cerca de 700 adeptos, é de extrema esquerda e tem uma ideologia antissistema. Tem problemas com o governo, que o acusa de participar de distúrbios em manifestações, e sua relação também é ruim com o clube |
Real Madrid | Ultra Sur | A organizada é de extrema direita e teve a entrada de muitos membros impedida pelo Real Madrid, que não a reconhece como torcida |
Real Sociedad | Peña Mújica | A torcida apareceu na década de 80, tem uma vocação independentista, é de extrema esquerda e mantém relações normais com o clube |
Sevilla | Biris Norte | É a organizada mais antiga da Espanha, tendo sido fundada em 1975. A torcida é de extrema esquerda, fica no gol norte do estádio Ramón Sánchez Pizjuán e tem divergências com a diretoria |
Valencia | Ultra Yomus | É uma torcida com vocação de extrema direita e que foi expulsa do Mestalla em janeiro deste ano |
Qual seria, então, o motivo de uma relação tão forte entre política e futebol na Espanha? Na verdade, não é um, são vários.
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Dois deles são a educação - a Espanha ficou em um ótimo 12º lugar em um ranking mundial de educação da Unesco de 2011 - e o efeito da crise econômica de 2008, que ainda afeta o país. Ao final do primeiro trimestre deste ano, o índice de desemprego era de 23,78%.
"A politização europeia advém do próprio fato de uma população com nível educacional mais elevado", afirmou ao ESPN.com.br o professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Marcus Vinicius de Freitas. "Tem também o momento de crise econômica. Quando a economia está bem, as pessoas esquecem um pouco da política, mas, quando está mal, elas são mais participativas."
Além disso, a Espanha tem uma concepção diferente em relação à maioria dos países, já que é formada por 17 regiões autônomas (Andaluzia, Aragão, Astúrias, Baleares, País Basco, Ilhas Canárias, Cantábria, Catalunha, Castela-La Mancha, Castela e Leão, Estremadura, Galícia, La Rioja, Comunidade de Madrid, Região de Múrcia, Comunidade Foral de Navarra e Comunidade Valenciana).
Cada uma tem sua identidade cultural e autonomia, o que proporciona características próprias e contribui para um sentimento nacionalista. "Você tem algumas ‘Espanhas' pela própria história. A Espanha é uma unificação de alguns membros que passaram a fazer parte de um conjunto. Só que as entidades nacionais não se perderam ao longo da história", explicou Freitas.
FRANQUISMO (1939-1976)
Esse sentimento ficou ainda mais forte após o início da ditadura do general Francisco Franco, que passou a governar de forma repressiva e foi um obstáculo em relação à autonomia das comunidades espanholas. Não à toa, o grupo armado ETA (Euskadi Ta Askatasuna - Pátria Basca e Liberdade, em basco) foi fundado em 1959, em meio ao governo militar, com o objetivo de conseguir a independência do País Basco - em 20 de outubro de 2011, após mais de 50 anos de ação, o mesmo anunciou o fim de suas atividades e, desde então, segue inativo.
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"O fato de ter acontecido uma repressão faz com que os indivíduos queiram participar mais para impedir que isso se repita. A repressão deu causa a um envolvimento político maior", declarou o professor da FAAP.
Franco ascendeu ao poder em 1939 após um grupo nacionalista vencer a Guerra Civil. Para isso, precisou da ajuda de Alemanha e Itália. Nos anos posteriores, retribuiu o auxílio aos regimes fascistas durante a Segunda Guerra Mundial.
A política tinha como bases o catolicismo e o anticomunismo, além de se caracterizar por uma forte repressão aos seus opositores. Economicamente, o país ficou estagnado, mas contava com o apoio financeiro dos Estados Unidos em meio à Guerra Fria. Além disso, Franco manteve-se firme na liderança graças ao radicalismo de seu governo, que controlava todos os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário).
A ditadura só acabou após a morte de Francisco Franco, aos 82 anos, em 1975. A partir de então, a Espanha passou a uma democracia parlamentar, teve a liderança do príncipe Juan Carlos I e suas comunidades voltaram a ter maior autonomia. De qualquer forma, um resquício da política do general segue em uma parcela da população.
O presidente da Liga de Futebol Profissional (entidade que organiza o Campeonato Espanhol), Javier Tebas, por exemplo, militou no Fuerza Nova, um partido franquista, durante a década de 70.
O impacto da ditadura também atingiu o futebol, e o nacionalismo espanhol foi para dentro das quatro linhas. Manifestações pró-Catalunha e bandeira da comunidade eram impedidas de marcarem presença nos estádios.
Uma história bem conhecida do futebol espanhol datada de 1943 indica a interferência da política. Após vencer em casa por 3 a 0 o Real Madrid, que ficou conhecido popularmente como o time do Franquismo, o Barcelona foi atropelado por 11 a 1 e acabou eliminado.
Relatos apontam que um diretor de estado da Espanha visitou armado o vestiário dos catalães antes do jogo e disse "alguns de vocês estão apenas jogando por causa da generosidade do regime, que os perdoou pela sua falta de patriotismo." Além disso, o árbitro da partida estaria claramente apitando a favor dos mandantes.
TEMPOS ATUAIS
Com o fim do Franquismo e a consequente maior liberdade de expressão na Espanha, as manifestações separatistas passaram a fazer parte do esporte, principalmente envolvendo o País Basco. Dessa forma, não houve um clima pacífico no futebol mesmo após a ditadura. "Hoje não há mais violência (no futebol basco). Já as décadas de 80 e 90 foram a época com mais violência, foi um período muito duro", disse Padilla.
O fim da ditadura e a maior autonomia do País Basco não diminuíram o ímpeto do ETA, que almejava a independência total da região. A situação viria a diminuir só neste século: a organização declarou um cessar-fogo permanente em 2006, mas que não foi cumprido. Uma nova trégua veio em 2011 e segue firme.
Enquanto isso, a realidade foi inversa na Catalunha, que vê o sentimento de emancipação em alta. Uma votação não oficial realizado no fim do ano passado mostrou que 80,7% da população deseja a independência da região.
Em meio a este cenário, Barcelona e Athletic Bilbao decidem a Copa do Rei. Este encontro - pela mesma fase do mesmo torneio - teve um episódio marcante do ponto de vista político em 2009. No momento da execução do Hino espanhol, os torcedores presentes no estádio Mestalla, em Valência, vaiaram, e a televisão pública, que transmite a decisão da competição, abaixou o seu volume para censurar o gesto dos fãs.
Porém, a tendência é que o jogo não envolva grande mobilização pela política, até pelo fato de estar se repetindo com frequência. "Tiveram muitas oportunidades nos últimos anos, é normal já. A maioria dos amistosos das seleções catalã e basca envolve mais como questão política", contou o jornalista, que ainda lembrou que Athletic x Barcelona já foi dérbi.
"Em nível esportivo, havia muita rivalidade. Até a Lei Bosman (criada em 1995 e que fazia os jogadores da União Europeia não contarem como estrangeiros), era um jogo quase como contra o Real Madrid, não havia boa relação. O Athletic brigava mais por títulos, mas foi afetado com a política da Lei Bosman."
De qualquer forma, a final da Copa do Rei de 2015 já causou um mal-estar no Real Madrid, que não quis ceder seu estádio. A vontade dos dois finalistas era jogar a decisão no estádio Santiago Bernabéu, maior, mas, como o clube merengue não é obrigado a disponibilizar sua casa, decidiu não liberá-la, o que lhe rendeu críticas.